Muito já se escreveu sobre o “novo normal” vivido em tempos de pandemia da Covid-19. O Judiciário brasileiro não escapou ileso a partir do estabelecimento do “plantão extraordinário” pelo Conselho Nacional de Justiça e, principalmente, com o deslocamento logístico de equipamentos e trabalho de magistrados e servidores para suas casas (home office).
Tínhamos um quadro jurídico em transição de uma moldura tradicional para a digital e, de repente, a chave foi girada para um mundo freneticamente digital. O jurislog mudou. O uso das ferramentas virtuais e plataformas digitais para a realização dos atos processuais passou à ordem do dia.
Nesse contexto, com o prosseguimento das atividades apenas, ou quase integralmente, no ambiente virtual, abriu-se uma grande janela de oportunidade para tornar o Judiciário mais célere e econômico.
Por qual motivo gastamos com tantos espaços físicos? Por que nos fóruns físicos da Justiça não há apenas equipes de suporte para garantir o funcionamento das atividades remotas ou para atendimentos presenciais em circunstâncias especiais ou extraordinárias? Em meio à crise econômica resultante da pandemia em todas as áreas, esse olhar logístico, que chamamos jurislog, acentuou-se profundamente, e no Judiciário não foi diferente.
O ponto principal da logística é o tempo e a discussão de melhorar a cadeia de valor na coleta, processamento e entrega de produtos e serviços. Na área criminal, por exemplo, o jurislog que sempre chamou a atenção foi a condução de presos ao fórum e a intimação de testemunhas para audiências presenciais.
A expansão da videoconferência, agora reforçada e amplamente exigida, traz a novidade de uma inteligência artificial capaz de sinalizar ao juiz, no vídeo, pelos movimentos faciais, se a pessoa está rememorando algo ocorrido ou criando fato inexistente. Os movimentos involuntários da pupila podem ser percebidos por um olho não humano, tornando segura a coleta desse tipo de prova.
No novo mundo jurídico, parece que será preciso superar o viés intimidatório de inquisidor do juiz criminal que, ao olhar para a testemunha, impõe que ela prometa dizer apenas a verdade, sob pena de ser presa e processada. Excepcionalmente, é claro, as provas poderiam ser coletadas presencialmente, quando alguns dos atores judiciais não dispusessem dos meios tecnológicos para a participação nos atos processuais virtuais, como previsto em ato do Conselho Nacional de Justiça.
Nesse “novo normal digital”, os indicadores de processamento, resultado, qualidade e impacto ganharam o palco. Aferir o tempo e quantidade de entrega do produto (sentença, alvará etc.); medir a qualidade do serviço (embargos acolhidos; agravos etc.); avaliar a quantidade e velocidade da movimentação processual (termodinâmica da atividade jurídica); aumentar a disponibilidade da plataforma virtual utilizada (acessibilidade segura à plataforma); existência de infraestrutura tecnológica para o usuário (acesso à infraestrutura); tudo isso reforçou o check do ciclo PDCA, concebido por Walter A. Shewhart e amplamente divulgado por Willian E. Deming.
Uma das lições que essa abordagem de uma jurislogística sofisticada promoverá será em relação às comunicações processuais para todo o ecossistema judiciário. Elas tendem a ser mais precisas, seguras e ágeis, com todas as citações e intimações por meio virtual, como já funciona no processo judicial eletrônico (PJe) para os advogados das partes.
Além disso, a interdependência de órgãos externos de coleta, entrega e retorno de documentos serão minimizadas. Também trará ao mínimo necessário o consumo de papel, impressões de atos judiciais, e reduziria o custo com a mão-de-obra interna para citação e intimações pessoais por oficial de Justiça.
Não é um futuro utópico ou distante. Atualmente, a maioria das penhoras é online, por meio de sistemas como o Bancenjud e o Renajud, sem falar que os arrestos de bens veiculares, por exemplo, são do interesse da própria autoridade de trânsito em cumprir tais mandados.
Na onda do jurislog, os cartórios extrajudiciais também poderão sofrer uma nova divisão geográfica, tornando-se inteiramente digitais, evitando-se assim o deslocamento às suas instalações físicas para validação dos atos da vida civil (registros de nascimento, casamento, óbitos, contratos, autenticação de documentos etc.).
Essa realidade do jurislog no Judiciário também já pediu licença e se sentou, silenciosamente, nos gabinetes e assessorias dos magistrados. Já se visualiza, nas próximas versões do PJe, entre outras melhorias, o acoplamento do sistema sinapses, que é uma plataforma para desenvolvimento e disponibilização em larga escala de modelos de inteligência artificial, o que possibilitará um salto logístico temporal na elaboração de minutas de documentos, decisões de casos mais simples, rapidamente, em uma escala além da capacidade humana.
A inteligência artificial será acoplada nativamente ao sistema. A eficiência operacional na produção de minutas de documentos chegará a patamares jamais vistos e o juiz poderá julgar mais rapidamente os casos mais simples, poupando tempo para utilizar em casos complexos.
Nesse jurislog de transformação digital abrupta, novas competências serão requeridas a todos, em especial, na lógica do pensamento tecnológico. Surgem, então, para reflexão, a ideia de forças antagônicas que visam, de um lado, defender o avanço da superdependência do judiciário à tecnologia, transformando o objeto em sujeito, e do outro, ponderações para que a tecnologia permaneça como objeto sob o controle do sujeito. Os dois extremos nesse mundo parecem ser irreconciliáveis?!
No meio de tudo, temos os intrapreneurs desenvolvendo suas próprias ideias sobre como deve ser o jurislog, porém sofrendo a parametrização de regras e metas estabelecidas pelo CNJ e pelos tribunais.
Enfim, vivenciamos um momento histórico na forma de prestação jurisdicional. A pandemia da Covid-19 sacudiu o Judiciário brasileiro como um gigantesco tsunami. A partir de agora, devemos observar se as forças de manutenção do status quo recolocam o Judiciário no passado, ou se serão convencidas, e convertidas, à visão da janela de oportunidade para que se escreva de forma pioneira a transformação digital de todo um poder.
Como toda mudança vigorosa traz em seu bojo riscos e ameaças ao status quo, uma das maiores preocupações é possibilidade dessa revolução produzida pelo jurislog acarretar a exclusão digital dos stakeholders do Judiciário, principalmente advogados, Ministério Público, sistema prisional, polícia, partes, que não sejam afeiçoadas ou não disponham dos equipamentos e acesso aos sistemas operacionais eletrônicos utilizados.
Outra área de preocupação é o ensino jurídico. As instituições de ensino superior precisarão adequar suas grades curriculares para abarcar a aprendizagem teórica e prática das novas tecnologias utilizadas pelo Judiciário, sob pena de termos mais nômades digitais do que nativos virtuais.
Esse também é um momento vibracional que favorece o aparecimento das verdadeiras lideranças digitais no seio do Judiciário, abandonando o modelo tradicional. A Associação Brasileira de Magistrados (AMB) tem sido um bom exemplo de adaptação aos novos tempos digitais no Judiciário, adotando uma linha de comunicação efetiva com os magistrados, tribunais, poderes e sociedade. Outras pandemias virão… A questão primordial é saber onde estará posicionado o Judiciário em cada uma delas.T
Raimundo Carlyle de Oliveira Costa é juiz de Direito, mestre em Direito (UFCE), MBA em Gestão Judiciária (FGV-Rio) e preceptor nos cursos de Formação Inicial de Magistrados na Escola da Magistratura do RN.
Heitor César Costa de Oliveira é doutorando em Administração na UnP, aluno especial do doutorando em Administração da UFRN e especialista em Gestão Pública.
Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2020, 13h35