A Constituição da República, em seu artigo 100 e seguintes, estabelece que os precatórios requisitados até 1º de julho de cada ano serão incluídos no orçamento do exercício seguinte e quitados pelo ente devedor até o final do referido ano orçamentário. Trata-se da regra geral, chamada de regime ordinário ou comum.
No artigo 101 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), a exceção que confirma a regra: os entes que em 25/3/15 possuíam precatórios inadimplidos terão até 31/12/24 para saldar suas dívidas, mediante aporte anual suficiente à quitação do “estoque de precatórios”, nunca inferior a percentual da receita corrente líquida previsto na Constituição (1% para municípios das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste; 1,5% para municípios das Regiões Sul e Sudeste e Estados, conforme Resolução 303/CNJ).
Tal moratória, infelizmente, é algo que vem se repetindo na história recente do nosso país (seis vezes desde 1988). É que no Brasil há a impressão de que é vantajoso fazer rolagem de dívidas, postergando a solução definitiva do problema. Um cuidadoso olhar sobre os dados de endividamento dos entes públicos com precatórios mostra exatamente o contrário.
Levantamento realizado pela Câmara Nacional de Gestores de Precatórios — órgão de apoio aos presidentes dos Tribunais de Justiça, composto pelos magistrados gestores de precatórios dos 27 tribunais estaduais — relativo ao endividamento dos entes públicos inseridos no regime especial mostra que a situação vem se agravando: em 2020 a dívida (incluindo precatórios estaduais, federais e trabalhistas) era de cerca de R$ 114 bilhões. Em 2021, ultrapassou o patamar de R$ 123 bilhões. Um crescimento de 8,1% que, com a diminuição do prazo para a sua quitação, implicou no aumento do endividamento dos entes.
Ainda de acordo com o estudo, o valor amortizado no exercício de 2020 pelos entes do regime especial deveria ter sido de R$ 22,8 bilhões e, para que a dívida chegasse ao patamar atual, teria ocorrido o incremento de cerca de R$ 32 bilhões de novos precatórios. Mas nesse universo muitas vezes nebuloso da gestão de precatórios há variáveis que escapam da previsibilidade.
Exemplo disso é o caso do Estado de São Paulo: seu comprometimento da RCL para pagamento do aporte anual em 2020 era de 3,36%, cerca de R$ 5,2 bilhões. Mas, por força de medida liminar concedida nos autos da ACO 3.458/STF, o Estado efetuou aporte de apenas R$ 2,3 bilhões, ou 1,5% de sua RCL. Houve, portanto, frustração de quase R$ 3 bilhões previstos para 2020. Para 2021, mantidas as balizas estabelecidas, em vez de R$ 6,5 bilhões (equivalentes a 4,16% de sua RCL), pagará apenas R$ 2,3 bilhões, aumentando o déficit em mais R$ 4,2 bilhões. Em termos práticos, tal decisão joga o prazo de quitação total de precatórios do Estado de São Paulo para 2032.
O Estado do Rio Grande do Sul também obteve liminar na Recl nº 33.236/STF para manter seus pagamentos no patamar de 1,5% de sua RCL (o percentual suficiente seria de 6,68%). Assim, enquanto deveria ter aportado R$ 2,4 bilhões em 2020, o Estado foi autorizado a pagar apenas R$ 500 milhões. Para 2021, o valor suficiente é de R$ 4,1 bilhões (10,74% da RCL), mas a previsão — por força da liminar concedida — é de R$ 580 milhões, representando uma frustração de R$ 3,5 bilhões e jogando o prazo final de quitação da dívida para o ano 2050!
Tais prorrogações são prejudiciais para credores e contribuintes: sobre os créditos de precatórios incidem Índice Nacional de Preço ao Consumidor (IPCA-e) e juros da poupança, o que, somado ao valor dos novos precatórios, muitas vezes ultrapassa o valor aportado a cada exercício. Quando o valor suficiente ao cumprimento integral da obrigação não foi adimplido a situação fica mais grave.
Tal modelo de prorrogação com elevadas taxas de correção e juros faz com que o endividamento cresça: estudo realizado com os 24 Estados que estão no regime especial demonstra aumento do comprometimento da RCL entre 2019 e 2020. Estão em situação preocupante: Maranhão, Paraíba, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo, Sergipe, e Rondônia, com comprometimento acima de 3% (patamar considerado pelo STF como sendo de superendividamento).
Em situação mais confortável estão 1.974 entes com comprometimento abaixo de 3%, cujas dívidas totais não chegam a R$ 32 bilhões, o que representa 26% do total da dívida de precatórios do regime especial.
Aos 279 devedores restantes (18% do total de devedores) impõe-se a busca de uma solução diversa do simples alongamento do prazo. Eles respondem por 74% da dívida total, ou seja, R$ 91,4 bilhões e merecem um tratamento também diferenciado. Ocorre que a rolagem da dívida não é uma solução, seis tentativas experimentadas nos últimas décadas o demonstram e não se pode alcançar resultados diferentes quando as mesmas práticas são repetidas.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 58 em trâmite no STF tem por escopo encontrar essa solução. Os entes buscam a concessão de financiamento da dívida por parte da União Federal (artigo 101, §4º, ADCT), menos oneroso que uma moratória com incidência de IPCA-e e juros da caderneta de poupança.
Há meios alternativos para quitação do estoque: acordo direto com os credores, compensação e utilização de depósitos judiciais como fonte suplementar.
É preciso um olhar atento e abrangente para que se possa projetar luzes à solução do problema. De pronto, pode-se afirmar com altivez: há solução outra além da simples e irrestrita prorrogação da moratória. Esta é onerosa demais aos credores e aos cofres públicos!
Bruno Lacerda Bezerra Fernandes é presidente da Câmara Nacional de Gestores de Precatórios e juiz de Direito do TJRN
Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2021, 18h15