A lição de Alcaçuz – Por Henrique Baltazar

A lição de Alcaçuz – Por Henrique Baltazar


Henrique Baltazar Vilar dos Santos – Juiz Coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional do RN

Os recentes atos violentos ocorridos no Estado do Ceará, aparentemente decorrentes da revolta de facções criminosas com a busca de controle estatal sobre as unidades prisionais, faz lembrar a história recente do Rio Grande do Norte.

Ora, uma das fontes de renda das facções criminosas é a venda de facilidades dentro de unidades prisionais, após, claro, criarem as dificuldades à vida de quem nelas é recolhido.

Nos presídios potiguares as facções começaram vendendo “segurança” para os presos, sendo aos faccionados através do recolhimento de taxas mensais (conhecidas como “cebolas”) e, aos não faccionados, através da cobrança de valores que lhes garantiam não serem agredidos por outros presos ou até por servidores penitenciários corruptos.

Entre os anos de 2011 e 2015, o Estado aos poucos passou o controle interno dos presídios para os presos, criando as figuras do “chaveiro” e “pagador”.

Isso ocorreu em razão da péssima e amadorística gestão do sistema prisional, bem como pela insuficiência no número de agentes penitenciários, que aos poucos passaram a se concentrar em algumas funções específicas de segurança e serviços administrativos, entregando o controle do interior das unidades prisionais a presos que mostravam melhor comportamento ou mais empatia com as direções dos presídios.

O “chaveiro” existia em cada pavilhão, notadamente nos presídios do Complexo de Alcaçuz, sendo ele um preso que ficava com as chaves das celas dos pavilhões, as quais abria e fechava nos horários que lhe eram determinados, bem como conduzia os demais internos para os setores administrativos das unidades prisionais, que ainda eram controladas pelo Estado.

Já o “pagador” (o qual algumas vezes era o mesmo “chaveiro”) era um preso que se encarregava da distribuição de alimentos, água e demais gêneros destinados aos presos.

A presunção era que “chaveiro” e “pagador” obedeciam às ordens dos agentes penitenciários, mas era corrente a informação de que eles efetivamente obedeciam ao que determinavam os líderes das facções criminosas.

No decorrer do tempo, conforme o Estado foi abdicando do controle do interior das unidades prisionais, as facções passaram a cobrar pela possibilidade de ter “banho de sol”, receber alimentação (que, fornecida pelo Estado e entregue aos “pagadores” para repasse aos internos, só eram distribuídas para quem as facções permitissem) e produtos de higiene e limpeza, e mesmo para conseguir um lugar para viver ou dormir (inclusive algum lugar menos desagradável, pois quem não pagasse poderia ser obrigado a dormir nos corredores ou junto aos sanitários).

Aliás, era corrente a informação de que presos se obrigavam a fornecer serviços sexuais aos líderes de facções ou seus clientes, tanto masculina como feminina, inclusive através de familiares, como forma de pagar pelo atendimento de alguma necessidade, como fornecimento de drogas aos viciados.

Finalmente, as facções, no interior dos presídios decidiam até quem vivia ou morria, sendo registradas 34 mortes no interior de unidades prisionais no ano de 2015 e 35 em 2016, dentro de população carcerária que então girava em torno de quatro mil pessoas.

Aliás, o controle das facções sobre o interior das unidades prisionais potiguares resta mais evidente quando se observa o número de fugas: em 2015 ocorreram 212 fuga, sendo 82 da Penitenciária Estadual de Alcaçuz; em 2016 o número aumentou para 384, sendo 109 de Alcaçuz.

O governo do Rio Grande do Norte afirmou em várias ocasiões que o número elevado de fugas se devia à Penitenciária Estadual de Alcaçuz ter sido construída sobre dunas de areia. Isso, porém, não é certo, sendo apenas uma forma de lançar a culpa sobre o problema nos governos anteriores.

É verdade que o presídio foi construído sobre dunas de areia, portanto, fáceis de cavar, sendo notórios os inúmeros túneis construídos pelos presos no decorrer dos últimos anos, por onde ocorreu a maior parte das fugas.

Entretanto, os túneis eram construídos porque o Estado não controlava os pavilhões das unidades prisionais, onde os agentes penitenciários raramente entravam, principalmente depois das rebeliões de março de 2015, que resultaram na total “quebra das trancas” (grades e cadeados das celas) em quase todos os presídios.

Ademais, cerca de dois terços das fugas ocorreram em outras unidades prisionais e não em Alcaçuz, inclusive através de túneis cavados na Penitenciária Estadual de Parnamirim (não construída sobre dunas, apesar de sobre terreno de areia) e na Penitenciária Estadual do Seridó, onde o solo é pedregoso, formado predominantemente por “neossolos litólicos”, que se caracterizam por serem pedregosos e rasos, com a rocha localizada a menos de 50 cm de profundidade.

Assim, tenho induvidoso que o terreno de areia não foi predominante para as fugas da Penitenciária de Alcaçuz, mas sim a inexistência de qualquer controle do Estado sobre o interior da unidade prisional, o que possibilitava aos presos cavar os túneis com a certeza de que não haveria ação estatal para interrompê-los.

Enfim, cadas a repercussão nacional e até internacional da rebelião de janeiro de 2017, que escancarou ao mundo o caos vivenciado no sistema prisional do Estado do Rio Grande do Norte, o governo viu-se forçado a agir.

Assim, após as ações emergenciais promovidas pelo governo federal, que enviou ao Estado a Força de Intervenção Penitenciária, impondo a ordem no interior das penitenciárias do Complexo de Alcaçuz, o governo substituiu o secretário da Sejuc, nomeando um dos comandantes daquela unidade especializada federal para o cargo, o qual realizou uma profunda reforma física nos presídios, eliminando diversas das deficiências existentes e em seguida conseguiu a nomeação de meio milhar de novos agentes penitenciários concursados, os quase foram devidamente treinados para a função.

Na sequência, implantaram-se rotinas rigorosas de revista pessoal e dos alojamentos, na atenção ao comportamento dos presos e à sua submissão à disciplina que lhes é imposta (rotinas que, diga-se, provocaram reclamações intensas dos presos que integram as facções criminosas, mas poucas daqueles que buscam cumprir regularmente suas penas, sem envolvimento com aquelas).

O comparativo de rebeliões, fugas e mortes antes e depois da retomada do controle das unidades prisionais pelo Estado (no ano de 2018 ocorreram apenas 14 mortes dentro do sistema prisional, sendo quase metade por causas naturais, enquanto foram anotadas 32 fugas em todo o estado, com apenas 03 da Penitenciária de Alcaçuz, todas por erros de servidores prisionais) não deixa dúvidas de que isso vem sendo fator de promoção dos direitos humanos no sistema prisional, ainda que cobre dos presos o inevitável preço do controle mais rígido do seu comportamento.

A rebelião e massacre de janeiro de 2017 foi um desafio ao Estado, uma demonstração de força e uma ação de busca do controle absoluto do sistema prisional por uma das “facções” criminosas existentes no estado, alimentada pelo autodiscurso estatal de derrota, de submissão ao caos.

A lição recebida, e agora replicada no Ceará, mostra que a imprescindibilidade de se combater qualquer organização criminosa que busque controlar o sistema prisional.

A “Guerra de Alcaçuz” só ocorreu porque o Estado abdicara do controle sobre o sistema prisional. Ao depois reassumir tal “controle”, o Estado parece ter entendido qual deve ser sua postura para possibilitar que a execução penal atinja seus objetivos (de punição, prevenção e busca de dar condições de ressocialização), mostrando que o caos pode ser enfrentado e vencido.

O Estado venceu em Alcaçuz e, se o fez naquele presídio que era exemplo do caos, pode também vencer em todo o resto do sistema prisional, seja no Rio Grande do Norte ou em qualquer outra unidade da federação.

Basta-lhe mudar sua postura, saindo do discurso de aceitação da derrota à conduta de assumir o controle. 

Gostou do conteúdo?! Compartilhe!