A limitação se dá em razão do cargo ocupado? Há perda de cidadania?
A resposta a essas indagações não são tão simples como aparentam ser.
Primeiro, não pode ser dada com voluntarismo e desejo pessoal. Segundo, não pode ser dada sem a devida contextualização do momento peculiar que o país passa. Terceiro e não menos importante, não pode ser dada sem que se analise o ordenamento jurídico, as patentes vedações da própria Carta Magna e em especial a peculiar situação de nossa Justiça Eleitoral. E por fim, não pode ser dada também sem a análise do porvir e da dificuldade prática de representação das classes em nosso Congresso Nacional.
Colocadas essas premissas, vamos tentar enfrentar o tema a partir do pedido da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) para que se permita aos Membros do Ministério Público e aos Juízes o direito de se candidatarem sem perda do cargo, bastando pedido de licença, o que de plano entendo não ser crível no modelo constitucional/legal brasileiro, mesmo ressaltando não haver a perda da qualidade de cidadão desses agentes, contudo existem limitações razoáveis aos cargos exercidos. O juiz perde a qualidade de cidadão pelo exercício do cargo?
E nos remeteremos a nossa posição no Conselho de Representantes da AMB sobre a posição da entidade quanto à postura da ANPR, e mesmo sem fazer a devida distinção entre a situação dos Juízes e dos membros do Parquet, entendemos que a atividade jurisdicional no sentido amplo do termo e as atribuições ministeriais, por si sós, criam barreiras intransponíveis.
Por maioria, o referido colegiado se opôs a possibilidade, com voto de encaminhamento de nosso Presidente Jayme Oliveira e encampado de plano por nós, na qualidade de Presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio Grande do Norte, tendo como alicerce a intangibilidade da própria prestação jurisdicional.
Explicamos: uma Justiça para ser justa e forte precisa ser totalmente independente e desatrelada de qualquer interesse que não o cumprimento objetivo dos valores constitucionais e legais. Logo, não concebemos que os Juízes consigam participar da atividade política partidária e ao mesmo tempo cumprir esse limite muito claro em nosso ordenamento e tanto é verdade que a atividade expressamente lhe é negada.
E não o foi à toa como se diz. O poder da atividade jurisdicional, mesmo normativamente não sendo seu e sim do povo na escolha dos padrões de conduta, é exercido na prática por agentes estatais de forma voluntariosa e isso não pode ser negado.
A participação ativa desses agentes como condutores da Justiça Eleitoral é um fator decisivo para que a almejada independência e imparcialidade, quando da postulação, entrem em choque frontal com os interesses naturais da política, isso sem fazer qualquer menção a possível politicagem.
Portanto, em se admitindo a participação de Juízes e Membros do Ministério Público na atividade político partidária sem que se afastem de suas funções, teremos um aprofundamento da desigualdade eleitoral já existente e que potencializará o abuso de poder, pois como imaginar que o seu possível julgador e investigador será seu adversário no embate eleitoral.
Sinceramente, a jurisdição no sentido mais amplo do termo, ou seja, com a efetiva participação de todos os agentes, não precisa de mais esse ingrediente. No Brasil, não distinguimos ainda política de politicagem e esta infelizmente vem prevalecendo, sendo temerário acreditar que tais profissionais, justamente por cumprirem a lei, possam ser de uma hora para outra os heróis que tanto buscamos.
Como ressaltamos de plano, não vamos aqui reproduzir o que pensamos que poderia ser e sim o que é em sua realidade nua e crua. Logo, nesse contexto, atribuir a capacidade eleitoral passiva a tais profissionais tem muito mais custo que benefício à própria sociedade. A própria busca pelos heróis não devia existir, logo alçá-los a essa condição por suas atuações é um risco ainda maior e inconsequente.
Em quase 25 anos de serviço público, dentre eles quase 20 como magistrado, estando atualmente exercendo a política associativa, até que nos identificamos pessoalmente com a política, acreditando que também poderíamos contribuir com seu amadurecimento e satisfação das necessidades coletivas, contudo vislumbramos, por outro lado, no momento, um óbice intransponível, a higidez e o próprio fortalecimento da atividade judicante.
Nos dias atuais, por exemplo, o que mais estamos vendo é a alegação de que Juízes e Membros do Parquet estão a atuar em suas atribuições com interesses políticos, o que de plano, condenamos esse prejulgamento, porém a possibilidade de candidatura arrefeceria essa situação, enfraquecendo a prestação jurisdicional e o livre desempenho da atividade ministerial, tão importantes à nossa sociedade.
Os atos emanados dos agentes que se candidatassem seriam todos inquinados de dúvida no momento da postulação, por mais que, por exemplo, em dados processos, tivéssemos provas mais que suficientes para uma condenação, a entrada na atividade político partidária dos agentes corroeria atos que sequer tivessem qualquer relação com as candidaturas.
Dessa forma, entendemos que se o profissional deseja se lançar na vida política, deve claramente fazer essa opção e arcar com os riscos dela, tudo para evitar que os seus cargos possam influenciar o eleitor mais do que o legítimo exercício deles no passado já o faz e isso sim seria republicano e legal, já que devemos conhecer a fundo nossos candidatos.
A permissão de candidatura de tais agentes, no momento, ampliaria o fosso de legitimidade atualmente existente, já que a própria bandeira do combate à corrupção que, felizmente, diminuiu essa distância, cederia ao natural apelo eleitoreiro.
Os agentes aqui tratados não devem agir nunca fora dos permissivos legais e a brecha da candidatura, por si só, pode indiscutivelmente levar, no mínimo, a uma mudança de postura por interesses eleitoreiros e sequer estamos condenando os eventuais candidatos nessa situação, mas como se diz essa mudança faz parte do jogo eleitoral.
Não conseguimos desvencilhar o magistrado candidato, por exemplo, de sua atividade jurisdicional e por mais que se criem regras para o seu afastamento, pelas peculiaridades de nosso sistema político, as mesmas não serão suficientes para evitar a intromissão natural que ocorrerá.
Pensar diferente dessa realidade é querer encobrir o sol com a peneira!
E existe algum espaço para discussão republicana dessa temática?
Respondemos afirmativamente, não para satisfazer eventual desejo de postulação futura como seremos criticados, mas por entender que esse tema tem encontro marcado, já que as democracias mais modernas já discutem e algumas até incentivam a ampla participação de todas as classes, não sendo diferente as aqui tratadas, justamente porque se precisa ocupar os espaços, trazer as inquietudes de cada classe, não sendo diferente a magistratura e o ministério público, que ocupando espaços, por exemplo, no Congresso Nacional, seriam fortalecidas e a por conseguinte, a própria sociedade.
Então, dentro desse espírito republicano aonde o diálogo construtivo é a premissa maior, reputamos imprescindível aprofundar os debates, contudo, nesse peculiar momento, somos totalmente contra essa postulação, pensando sempre no fortalecimento das instituições, no cumprimento objetivo do ordenamento jurídico, sem perder de vista a profundidade do tema e a esperança de que a própria política mude, deixando de regra geral ser politicagem e aí sim podermos, quem sabe, permitir em outro contexto, que tais agentes se candidatem e possam contribuir para o fortalecimento da política.
Fora desse contexto ainda inexistente, somos fadados a vedar ao magistrado cidadão, por excelência, essa possibilidade, já que a escolha de cada Juiz e Membro do Parquet em assumir ao cargo já passou pela análise prévia de não se admitir a postulação político partidária, daí porque mudaríamos as regras jogo sem que houvesse mudança de circunstâncias, o que não se afigura razoável.
Finalizamos essa pequena reflexão, instando a si mesmo como potencial postulante, quem sabe, em outro momento, contudo, o nosso compromisso com a magistratura nos impõe o dever de defesa, intransigente, da atividade jurisdicional e esta sempre nos guiará, logo só sairemos dessa premissa quando não estivermos mais com a toga, pois esta nos condiciona e limita como cidadão em sua plenitude, sendo mais que razoável, no atual contexto, a vedação ao exercício de cargo político sem a devida exoneração do cargo.
Quer se candidatar no modelo atual, que se peça a devida exoneração ou então se lute democraticamente e dentro do devido processo legislativo pela mudança e que esta venha completa, ou seja, com a prevalência da política sobre a politicagem!
Por Herval Sampaio Júnior
Presidente da AMARN
Mestre e Doutorando em Direito Constitucional, Especialista em Processo Civil e Penal, Professor da UERN, ESMARN, Coordenador Acadêmico do Curso de Especialização de Direitos Humanos da UERN. Autor de várias obras jurídicas, Juiz de Direito e ex-Juiz Eleitoral