“Os juízes brasileiros tornaram-se permanente alvo de ataques, de tentativa de cerceamento de sua atuação constitucional e, pior, busca-se mesmo criminalizar seu agir”, condenou a ministra Cármen Lúcia, na manhã desta terça-feira (29/11), em Brasília, na abertura da 32ª Sessão Extraordinária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que ela preside junto com o Supremo Tribunal Federal (STF).
“Julgar é ofício árduo. Mas é imprescindível para se viver sem que a vingança prevaleça. Sem que o mais forte imponha sua vontade e seu interesse ao mais fraco”, lembrou Cármen Lúcia, no início de seu pronunciamento, lido, de 1.100 palavras. A ministra alertou: “Confundir problemas, inclusive os remuneratórios, que dispõem de meios de serem resolvidos, com o abatimento da condição legítima do juiz, é atuar contra a democracia, contra a cidadania que demanda justiça, contra o Brasil que lutamos por construir”.
A presidente do CNJ e do STF observou que “juiz sem independência não é juiz; é carimbador de despachos, segundo interesses particulares, e não garante direitos fundamentais segundo a legislação vigente”. Na semana decisiva em que o país discute limites de competência de seus poderes, Cármen Lúcia pontuou: “Se é desejável socialmente a democracia, é impossível – como demonstrado historicamente – recusar-se o Judiciário como estrutura autônoma e independente de poder do Estado nacional. Não há democracia sem Judiciário. E o Judiciário somente cumpre o seu papel constitucional numa democracia”.
Sem citar nomes, a presidente do CNJ e do STF repudiou a imputação de “todas as mazelas a um corpo profissional da Justiça que, como todo humano, sujeita-se a erros, sim, mas não tem neles a sua marca dominante, que é hoje a do trabalho”. Cármen Lúcia vê nisso um objetivo: “Desmoraliza-se, enfim, a instituição e seus integrantes, para não se permitir que o juiz julgue, que as leis prevaleçam e que a veracidade de erros humanos seja apurada, julgada e punida, se for o caso”.
Como exemplo, a ministra Cármen Lúcia citou a realização de 623.454 audiências de conciliação de conflitos, na semana passada, quando juízes e conciliadores trabalharam em três turnos, “até altas horas da noite para atender as demandas da sociedade e termos uma sociedade em paz”.
A presidente do CNJ e do STF encerrou, com uma clara defesa da autonomia e independência dos poderes: “Todos nós estamos aqui trabalhando para um país mais justo, mais democrático para todos os brasileiros, e atuando rigorosamente segundo as leis do país, que juramos cumprir. Nós vamos continuar a agir dessa forma. E esperamos muito que todos os poderes da República atuem desse jeito, respeitando-nos uns aos outros e, principalmente, buscando um Brasil melhor para todo mundo”.
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Abaixo, sob o título de “Judiciário e Democracia”, o pronunciamento da presidente do STF e do CNJ:
Judiciário e Democracia
Cármen Lúcia
“Por causa dessa demonstração que se fez na Semana Nacional da Conciliação, que são dados de fato, eu não poderia deixar de fazer as considerações de que julgar é um ofício árduo, mas é imprescindível para se viver sem que a vingança prevaleça. Sem que o mais forte imponha sua vontade e seu interesse ao mais fraco.
A superação da barbárie dá-se pela substituição do desejo animalesco de vingança pela busca de realização da justiça, que é o que estamos tentando fazer permanentemente.
A estrutura do Poder Judiciário é feita por seres humanos, e como próprio do humano, ela é imperfeita. Estamos tentando aperfeiçoá-la, muito mais nós que temos o ofício de julgar. Mas desde a concepção democrática do princípio da independência e harmonia dos poderes estatais, o Judiciário vem cumprindo o papel de esteio da democracia. O Judiciário brasileiro tem dado reiteradas demonstrações desse compromisso, com a democracia e com a sociedade.
Tanto parecia princípio aceito socialmente na forma acolhida constitucionalmente, no caso brasileiro, desde 1988 formalmente. Mas eu fico a pensar se me enganei ao crer que os quase noventa milhões de processos em tramitação em curso no Brasil estariam a demonstrar a escolha da sociedade brasileira pela Justiça ao invés de se palmilhar o caminho da barbárie e do descompromisso com o Poder Judiciário.
Numa inegável concertação, a palavra justiça tem tomado conta dos noticiários, dos textos em geral, desde os textos romanceados que valorizariam a justiça na sociedade, de programas de entretenimento, domina o cenário, mas os juízes brasileiros tornaram-se nos últimos tempos alvos de ataques, de tentativa de cerceamento de sua atuação constitucional e, o que é pior, busca-se mesmo criminalizar o agir dos juízes brasileiros, restabelecendo-se até mesmo o que já foi apelidado de “crime de hermenêutica” no início da República, e o que foi ali repudiado.
Juiz sem independência não é juiz; é carimbador de despachos, segundo interesses particulares, e não garante direitos fundamentais segundo a legislação vigente.
Juiz sem independência tem de vocacionar-se a ser mártir para ser imparcial. Porque ser imparcial impõe compromisso ético intangível e responsabilidade funcional integral.
Por isso eu me pergunto, com o Judiciário que a Constituição instituiu para o Brasil, com juízes buscando desesperadamente aperfeiçoar-se, com um Conselho Nacional de Justiça atuando permanentemente composto por membros dos poderes da República, do Ministério Público e da sociedade civil, aqui muito bem representada pela Ordem dos Advogados do Brasil, que Judiciário o Brasil quer. Ou qual Judiciário algumas pessoas querem para o Brasil. Ou mesmo se querem um Judiciário, com os princípios de imparcialidade, independência e autonomia.
Se é desejável socialmente a democracia, é impossível – como demonstrado historicamente – recusar-se o Judiciário como estrutura autônoma e independente de poder do Estado nacional. Não há democracia sem Judiciário. E o Judiciário somente cumpre o seu papel constitucional numa democracia. Toda ditadura começa rasgando a Constituição (ainda que sob várias formas, incluídas as subliminares de emendas mitigadoras das competências e garantias dos juízes), amordaçando os juízes (no Brasil, chegou-se à cassação de três ministros do Supremo Tribunal Federal que desagradavam os donos de poder de plantão), imputam-se todas as mazelas a um corpo profissional que, como todo humano, sujeita-se a erros sim, mas não tem neles a sua marca dominante, que é hoje a do trabalho. Desmoraliza-se, enfim, a instituição e seus integrantes, para não se permitir que o juiz julgue, que as leis prevaleçam e que a veracidade de erros humanos seja apurada, julgada e punida, se for o caso.
Somente na semana passada, dedicada à conciliação e à mediação entre conflitos, juízes, conciliadores e colaboradores e realizaram 623.454 audiências, trabalhando nos três turnos, sob a orientação de conselheiros deste Conselho Nacional de Justiça que trabalharam arduamente para se chegar aos resultados até aqui apresentados dessa semana, e que ainda não são definitivos. Portanto nós temos trabalhadores, os juízes e os conciliadores, até altas horas da noite para atender as demandas da sociedade e para termos uma sociedade em paz. A paz vem da justiça.
Nada disso tem sido sequer mencionado muitas vezes como se apenas há erros, e há erros que precisam ser corrigidos. Este Conselho tem se empenhado exatamente em dar cobro a esses erros e atuar no sentido de fazer com que esses erros sejam devidamente escoimados do Poder Judiciário.
Criminalizar a jurisdição é fulminar a democracia. Eu pergunto a quem isso interessa? Não é ao povo, certamente. Não é aos democratas, por óbvio.
Confundir problemas, inclusive os remuneratórios, que dispõem de meios de serem resolvidos, e serão – tanto que a Corregedoria, o ministro corregedor, instituiu um grupo exatamente para verificar a situação desses quadros remuneratórios, eventuais erros e as providências a serem tomadas – com o abatimento da condição legítima do juiz, é atuar contra a democracia, contra a cidadania que demanda justiça, contra o Brasil que lutamos por construir.
Ensinava Ruy Barbosa que “nenhum tribunal, ao aplicar a lei, incorre, nem pode incorrer, em responsabilidade, senão quando sentencia contra as suas disposições literais, ou quando se corrompe, julgando sob a influência de peita ou suborno. Fora daí não há justiça, não há magistratura, não há tribunais. Quem quer que saiba, dizia Ruy Barbosa, ao menos em confuso, dessas coisas, não ignorará que todos os juízes deste mundo gozam, como juízes, pela natureza essencial a suas funções, do benefício de não poderem incorrer em responsabilidade pela inteligência que derem às leis de que são aplicadores” (BARBOSA, Ruy – O STF na Constituição. In Escritos e Discursos Seletos. Rio de Janeiro: Gallimard, 1997, p. 557)
Portanto, digo, eu, justiça não é luxo, é necessidade primária para se viver com o outro e para se viver em paz. Conviver põe conflitos; viver em paz impõe Justiça.
Não somos, os juízes, senão humanos tentando muito acertar, segundo a Constituição e as leis que nos são impostas pelo poder competente e a quem nós devemos todo o respeito. E é assim que temos atuado. Desconstruir-nos como Poder Judiciário ou como juízes independentes interessa a quem? Enfraquecer-nos objetiva o que? Afinal, acho que nós do Poder Judiciário, do Ministério Público e da classe de advogados devemos nos perguntar que Brasil que temos e que Brasil queremos ter? Da minha parte, disse aqui na primeira sessão que presidi, e obtive a resposta dos senhores conselheiros, que todos nós estamos aqui trabalhando para um país mais justo, mais democrático para todos os brasileiros, e atuando rigorosamente segundo as leis do país, que juramos cumprir. Nós vamos continuar a agir dessa forma. E esperamos muito que todos os poderes da República atuem desse jeito, respeitando-nos uns aos outros e, principalmente, buscando um Brasil melhor para todo mundo. Muito obrigada, senhores conselheiros.”
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