Uma das instituições processuais mais tradicionais do Brasil, e uma das coisas muito erradas no direito brasileiro, são os vulgarmente conhecidos “embargos auriculares”. Segundo este instituto, uma causa tem tanto mais chance de ser bem sucedida quanto mais contato o advogado ou parte tenha com o juiz antes dele apreciar o pedido. Essa probabilidade está vinculada a uma peculiar urgência em esclarecer aquilo que a postulação escrita – regra no processo – não pôde fazer.
No costume judicial americano, usado aqui como espécie de referência de práticas mais sensatas, o fato de uma das partes encontrar-se com o juiz da causa sem o conhecimento e presença da parte contrária – a chamada comunicação ex parte – é encarado como uma conduta anti-ética (é verdade) e, de modo geral, proibida pelas regras que garantem o due process – Constituição, 14ª emenda, seção 1: “(…) nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law (…)”. Exceções são raríssimas.
No Brasil, a cláusula do devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa também são assegurados pela Constituição. O art. 5º, LIV, da Constituição Federal dispõe que: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” Ao passo que o seu inciso LV diz que: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Contudo, ao contrário do que impõe o texto constitucional, há uma regra que aparentemente (eu disse aparentemente!) permitiria o contato ex parte. O art. 7º, VIII do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei 8.906/1994) permite ao advogado “dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada”.
No aspecto judicial há duas regras incidentes. A primeira é o art. 35, IV da Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN), que diz: “É dever do magistrado: tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência”. A segunda está inscrita no Código de Ética da Magistratura, editado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que em seu art. 9º impõe ao juiz o dever de imparcialidade, com a igualdade de tratamento às partes, excetuando do chamado tratamento discriminatório “a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado, contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja solicitado”.
Em resumo, temos o seguinte: (i) a CF garante o contraditório e o devido processo legal; (ii) o Estatuto da Ordem permite que o advogado fale com o juiz quando quiser; (iii) a Lei Orgânica da Magistratura impõe ao juiz o dever de receber o advogado ou parte quando for uma situação urgente e cuja solução seja também urgente e (iv) o Código de Ética da Magistratura diz que não é falta ética receber apenas uma das partes quando este direito é assegurado à parte contrária.
A solução é simples. A Constituição Federal deve se sobrepor a toda e qualquer regra inferior que vá contra o devido processo legal e contra o contraditório. Contraditório é, grosso modo, a garantia de que a parte tomará conhecimento de todos os argumentos e provas da parte contrária.
O dispositivo do Estatuto da OAB, fortemente influenciado pelo esprit de corps da advocacia, não pode ser interpretado como um passe livre para o contato entre advogado e juiz sem a presença da parte contrária. Considerando que o contato entre eles supõe uma relação processual, forçoso concluir que audiências unilaterais ferem o contraditório, pois impedem o conhecimento do que acontece no processo pela parte contrária. Logo, essa previsão legal não subsiste perante a Constituição.
O Código de Ética da Magistratura, igualmente, além de não poder prevalecer sobre a Constituição, na mesma medida em que diz não haver falta ética na concessão de audiência unilateral, também não veda que o magistrado faça exigência de ambas as partes para concessão de audiências fora do curso normal do processo.
O tratamento mais adequado parece ser o da LOMAN, que impõe ao juiz o dever de conceder audiências ex parte somente quando tanto o problema quanto a solução sejam urgentes e, mesmo neste caso, parece que seria necessário, pelo contraditório, que tal procedimento fosse registrado para consulta futura da parte contrária.
Se o contraditório, afinal, pressupõe o conhecimento de todos os atos processuais pelas partes, o que é impossível nos embargos auriculares, devemos tratá-los como prática pouco saudável, apesar de tradicionalmente aceita.
O processo é, em si, uma garantia legal e a sua formalidade não é opcional. Os “embargos auriculares”, decorrência do jeitinho brasileiro, antes de representarem uma saudável concessão do espírito nacional às artes jurídicas, são uma fonte reiterada de agressões aos princípios mais básicos do devido processo legal e, por isso, descabidos por qualquer razão que seja.
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Nota: texto publicado originalmente no blog Direito e Liberalismo em 9 de março de 2012
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